24 de abril de 2016

O TREINO “REAL” EM DEFESA PESSOAL

Na realidade, nunca se poderá desconsiderar a importância do treino. Através dele, estás a aproximar-te o mais possível da situação que queres evitar – um confronto físico. Parece um contrassenso:  expões-te precisamente à situação que queres evitar... Mas, na realidade, trata-se de uma "vacina" – através dessa exposição, obtêm-se "anticorpos", na forma de uma dessensibilização ao stress e medo inerentes, e uma acumulação de conhecimentos e reflexos cuja aplicação prática será extremamente útil.


Assim, quando  realmente te vires nas situações reais para que treinas-te, a tua reação será muito mais estruturada e organizada; de facto, um dos mecanismos psicológicos humanos é o que nos faz reagir de forma adequada apenas ao que conhecemos e experimentámos (chamasse acumulação de experiências), de contrário podemos fazê-lo de forma ineficaz, ou até "congelar", isto é, imobilizarmo-nos e não fazer nada, como um animal no meio da estrada, sob a luz dos faróis de um carro. E todos sabemos o que lhe acontece depois...

É muito conveniente possuir experiência de ser assaltado (!!!). É por isso que convém treinar realisticamente. (Treino baseado na realidade!) Claro que, para isso, não vamos expor-nos ao acontecimento real, mas sim adotar um treino que nos coloque o mais possível em situações tão próximas quanto se consiga do acontecimento real.

Todos conhecemos aqueles "cursos" em que os praticantes treinam ataques e defesas estilizadas, sempre os mesmos, até ficar muito hábeis em executá-los. Um treino deste tipo é perigoso, por diversas razões. Em primeiro lugar, porque nos dá uma falsa confiança: se passamos meses ou anos a treinar, e se conseguimos executar o que o professor quer de nós, é lógico supor que estamos preparados para nos "defender". Em segundo, porque nos inculca um comportamento mecânico que, como não corresponde ao que vamos encontrar na rua, nos coloca em perigo.

A prova disso é que, quando estamos a "treinar" uma técnica de, por exemplo, defesa contra um soco da direita e inesperadamente atacamos o adversário com uma esquerda ou um pontapé, ele fica todo baralhado (e até somos por vezes recriminados por ele ou pelo "mestre" por estarmos a "fazer batota" ou a "não dar a devida atenção ao treino"!!!). Na rua não há o conceito de batota – o adversário fará de certeza TUDO para vencer. Sem regras.

Na realidade, procederemos como treinamos. Tudo o que fazemos repetidamente durante o treino nos condiciona, até o executarmos sem pensar. E é aqui que surge o problema: se o treino é real e sensato, isso é bom; se não, isso é muito, muito mau. Se treinamos com um professor que acha que o melhor do mundo é o karaté (ou o judo, ou o aikidô ou o kung-fu, ou etc., etc), com exclusão de tudo o mais, ou que é partidário de treinar contra situações predeterminadas, mais tarde ou mais cedo vamos ter problemas.

Não me interpretem mal – tudo depende do nosso objetivo. Qualquer destas artes marciais não é má só por si; de facto, qualquer delas constitui um importante instrumento de condicionamento físico, bem-estar físico e mental e sã convivência e divertimento. Mas, como são praticadas numa ótica desportiva (altamente codificadas, com regras de etiqueta, comportamento e segurança), é isso que fica gravado na nossa memória muscular. E ninguém quer fazer vénias a um assaltante que nos ataca com os punhos ou uma navalha, ou hesitar em bater porque está habituado a controlar os seus golpes (para não magoar o parceiro) ou tentar golpear pontos pouco sensíveis (porque os pontos vitais são proibidos em competição), pois não?

Talvez até mais do que o corpo, devemos treinar a mente para reagir de modo adequado, senão estaremos a fazer o mesmo que outros métodos: aprendendo apenas técnicas para situações específicas, em vez de aprender princípios que podem ser aplicados a qualquer situação.

O primeiro passo para obter o que se quer é fazer a pergunta: o que é que eu quero? Mesmo antes de considerar os princípios ou valides dum sistema de autodefesa devemos primeiro responder a esta questão. Qual é o objetivo que eu desejo ao adotar este treino? É desta resposta que depende todo o nosso futuro nesta área, e até o preço que estamos dispostos a pagar por isso.

E a resposta deve ser: Eu treino autodefesa porque desejo aprender a lidar com ataques físicos potencialmente letais provenientes de uma ou mais pessoas, com o fim de preservar a minha integridade física e psicológica (e a de outros que eventualmente me rodeiem).

Se o que queres é competir dentro das artes marciais, acharás certamente muitas artes e desportos de combate que te proporcionarão uma excelente instrução e apaixonantes competições. Aí poderás, com segurança, comparar a tua habilidade com a de outros competidores, dentro de regras acordadas internacionalmente e sob a vigilância de juízes e árbitros.

Mas compreende: as técnicas de autodefesa não te darão nada disto! Igualmente, as artes marciais desportivas não te darão obrigatoriamente segurança na rua. Claro que podes pensar: Mas será que não posso treinar para competição desportiva e também para me defender? Infelizmente, a resposta é NÃO!!! A razão para isto é que... atuas como treinas – SEMPRE!!!

Se  treinas num dojo/escola, com regras que te dizem uma e outra vez que não deves empregar mais do que essa força nas técnicas, para manter a segurança perante o parceiro, e que não podes sequer tentar atingir a sua cabeça, face ou genitais, fica certo de que, quando o quiseres fazer, o automatismo adquirido durante o treino irá restringir – e muito – a tua forma de combater, e  irás reagir a um ataque real, desencadeado por um criminoso, do modo como o fazes no ginásio, restringido pelas regras. E, na rua, isso será fatal. Porque, bem vê, o agressor não se comportará do mesmo modo: Essas regras só se aplicam a ti, porque treinas-te desse modo. O teu agressor não terá restrição alguma!!!

Exemplos? Há uns anos, nos EUA, foi aberto um inquérito (como é habitual) no prosseguimento da morte de dois polícias num tiroteio. Durante esta investigação foram revelados factos muito perturbantes.

A carreira de tiro onde estes dois agentes faziam há anos a sua prática de tiro ao alvo era comandada por um oficial altamente competente e muito exigente com os procedimentos e limpeza das suas instalações. Por isso, e durante o tiro, os praticantes eram obrigados a, ao abrir o tambor dos revólveres para retirar os cartuchos vazios e recarregar, despejá-los na mão e guardá-los no bolso.

O problema é que, numa situação real, os polícias devem vazar os cartuchos no chão enquanto recarregam as armas, não se importando minimamente onde eles caiem. É mais rápido. Claro (dirão vocês) que numa situação real estes dois profissionais altamente treinados ultrapassariam este condicionamento e atuariam de modo adequado?!

ERRADO!!! Ambos os mortos tinham nas mãos e nos bolsos cartuchos vazios, exatamente como lhes tinha sido gravado nas mentes durante o treino!!! Mesmo enfrentando uma situação real, onde esses segundos extras talvez tivessem significado a diferença entre a vida e a morte, não se conseguiram subtrair ao condicionamento sofrido.

É por isto que  deves ser extremamente cuidadoso no modo como treinas fisicamente para autodefesa. Há um processo de codificação que é "instalado" quando se treina, e é esse processo que ultrapassa tudo, determinando as tuas reações sob stress. Quando a adrenalina inunda o teu organismo e tu praticamente deixas de pensar (ou pelo menos deixas de pensar normalmente, como o fazes quando calmo), é este condicionamento que prevalece.

Por isso, tem cuidado: assegura-te de que estás a treinar para as situações que te poderão aparecer na rua, não no ginásio!!! Pela tua saudinha.

Quanto mais complicada for a situação mais simples deverá ser a técnica empregue, pois nessas condições o teu cérebro só se lembrará das coisas mais básicas e primitivas, não das mais sofisticadas.

Na China, um amigo observou uma equipa de kung fu Wu shu (os célebres Monges de Shaolin) treinar o seu espetáculo. Para os que não sabem, Wu shu é uma arte marcial chinesa que é apresentada em público, num espetáculo coreografado tão intrincada e minuciosamente como o Lago dos Cisnes no Bolshoi! As lutas são muito elaboradas e dá muito trabalho e prática montar um espetáculo convincente.

Eles tinham sido autorizados pelo Instrutor Chefe (ausente) a assistir ao treino, todos ocidentais e os monges (todos adolescentes entre os 13 e os vinte e poucos anos) estavam excitados e propensos ao “show off”. Putos são putos em todos os países do mundo, não é? E então observou-se uma coisa interessante: de todas as vezes que alguém queria brincar, tudo o que tinha a fazer era executar um movimento diferente do habitual, ou fora do seu lugar. Literalmente,  estavas a ver uma cena que juraria ser uma luta mortal entre dois combatentes superiores; os movimentos evoluíam, rápidos, fluentes, perigosos; de repente um dos rapazes fazia algo fora do contexto, como dar uma leve bofetada no outro, ou puxar-lhe o nariz, como nos Três Estarolas. E acabava tudo a rir, fazendo um intervalo.

Só muito mais tarde, depois de meses de treino, compreendemos que este era exatamente o processo pelo qual a maior parte das artes marciais e desportos de combate são ensinados, em especial quando o "ensino" é supostamente de defesa pessoal: basicamente há alguns padrões que se memorizam para responder a vários ataques coreografados. Memorizar estas respostas a ataques previstos  até poderá parecer bom. Mas o que vai acontecer quando alguém variar o ataque? A maior parte dos estudantes congela ou atrapalha-se. Porquê? Porque nunca lhes ensinaram realmente a lutar.

Basicamente o que eles aprenderam foi a "dançar" e, enquanto tudo seguir a sua "rotina", até pode resultar. Mas todos sabemos que as coisas nunca se passam tal e qual as planeamos.

A luta não deve ser diferente, quer estejamos num ginásio ou na rua, num combate mortal com os nossos atacantes. A única diferença é que no ginásio tu não mutilas ou matas o teu adversário, se bem que os movimentos sejam os mesmos (apenas a um ritmo aceitável para o parceiro). Se, pelo contrário, estamos a operar de modo a memorizar uma dada resposta a um ataque, isso é apenas um movimento de dança, até um treino de coordenação, mas não uma luta!

Quando não conhecemos esta diferença podemos facilmente cair na síndrome do "agora-é-que-é-a-sério": é quando  treinas com uma atitude mental de brincadeira e fronteiras (não faço isso porque também não é preciso exagerar...) e, ao enfrentar um ataque real iminente hesitas, pois o teu cérebro não consegue aceitar o facto de que "agora aquilo é a sério" – não está habituado a treinar assim! Como contraste temos o bem treinado lutador que encara todo o processo como luta e procede: 1º - escolher os alvos; 2º - atingi-los. A única diferença para ele é que, no primeiro caso (o treino) não pode usar toda a sua força, no segundo pode. Isto acontece porque este lutador nunca se vê como "treinando" – está sempre a lutar. Se compreendermos e praticarmos este conceito estaremos sempre melhor preparados para as exigências de uma situação de confronto.









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